Nossas doces transgressões ( Por Ricardo Bohek )


Não somos seres livres. Sequer chegamos a conquistar o que se convencionou chamar de “livre-arbítrio”. Vivemos permanentemente acorrentados a um esquema de vida que nos instiga a fazer todos os dias as mesmas coisas, da mesma maneira, seguir pelos mesmos caminhos, agindo de preferência da mesma forma que os outros ao nosso lado. Nossa criatividade é aceita até o ponto em que não extrapole os claros limites que separaram o politicamente correto do perigosamente questionador. A sociedade aprova essa nossa submissão ao já tradicional e estabelecido, pagando-nos com salários, prêmios, bônus, promoções, condecorações, indicações, elogios, aplausos, sorrisos e tapinhas nas costas... Promete-nos um mundo de oportunidades para sermos tão felizes e prósperos nesse ano quanto já nos havia prometido no ano passado ou em 1940... A mesma felicidade já antes desejada por nossos pais, nossos avós, bisavós...



Ao menor sinal de rebeldia em relação a essas normas de conduta, o que ganhamos é a punição. E existem várias formas para que ela se mostre em toda sua crueldade. Algumas delas são óbvias: rejeição da família, afastamento dos amigos, calúnias contra a vida pessoal, perda do emprego, fechamento de portas antes escancaradas... No entanto, existe uma forma muito sutil de punição. Ela consiste na tortura do “rebelde”, plantando-se nele uma semente que permanecerá crescendo rapidamente como um grande tumor, terminando por envolvê-lo em um processo de medo e indecisão, dúvida e sentimento de incapacidade. O nome dessa semente é culpa.



Mas calma! Não é apenas a sociedade “lá fora”, exterior a nós, a responsável pelo plantio dessa semente. Essa sociedade somos nós. Sou eu. É você. Somos todos homo sapiens. Não nos ponhamos fora disso! Fazemos exatamente a mesma coisa contra nós próprios e contra os que vivem ao nosso lado, especialmente aqueles a quem chamamos de “parentes”. Usamos os mesmos artifícios para manter as pessoas com quem convivemos sempre da mesma forma, sem surpresas, desestimulando qualquer tentativa de inovação ou independência que venha a desafiar a nossa própria inércia. Exatamente para que não mudem. Para que sejam previsíveis... Controláveis... Para que não me venham mostrar a ideia que eu adoraria ter tido, ou aquela mesma atitude ousada que eu deveria ter tomado há vários anos e não tive coragem... Melhor dizendo, para que não nos esfreguem na cara o imenso abismo existente entre a pessoa que eu sou hoje e aquela em quem eu gostaria de me ter tornado.



Somos mestres em atravessar a culpa garganta adentro daqueles a quem queremos manter dentro de padrões que nos mantenham seguros. Existem várias técnicas para isso, todas agrupadas dentro de um livrinho precioso, sucesso de vendagem, que costumamos manter sempre junto à nossa cabeceira, chamado “Formas Sutis para Controlar a Vida Alheia”. Já deve estar na milionésima edição, só nesse país! Com ele, aprendemos que uma das formas mais eficazes – se não a melhor – de se fazer com que alguém venha a se comportar exatamente como queremos é enchê-lo com essa matéria cancerígena chamada culpa.



Nós mesmos nos impomos, conscientemente ou não, punições de todo tipo, principalmente na forma de autoboicotes. Eles costumam ocorrer quando nos sentimos próximos de trilhar um caminho “perigosamente livre”, onde a sensação de algo “novo demais” pode fazer desabar a nossa sensação de segurança. Uma fraca autoestima fatalmente entregará o jogo... E mesmo que esse novo caminho possa representar uma melhora substancial em nossa qualidade de vida, há o retrocesso e decidimos ficar onde estamos. É a vitória dos medos cuidadosamente alimentados durante anos. Então, munidos de um quase nulo conhecimento dos princípios que regem a vida, apelamos para a velha e traiçoeira Dona Esperança: “Um dia, quem sabe, algo virá em nosso auxílio”...



Situações excelentes, longamente aguardadas, têm escondidas em si a certeza de nos arrancar de uma condição atual que, apesar de ruim, monótona ou dolorida, possui a grande e importante “vantagem” de ser já conhecida.



Assim, movidos pelo medo da derrota, assumimos a mentira da inércia. Não percebermos que já estamos, há muito, corrompidos pela estagnação. E justamente pelo simples fato de não ousarmos. No entanto, é a idéia de sermos pequenos, falíveis, a nossa principal doença. Um antídoto? Saber quem somos. Saber do que somos capazes. E conhecer as infinitas maneiras para se vivenciar e alterar o mundo fora de nós.



Pecado é transgredir o seu “melhor”. A culpa é, exatamente, o sentimento que nos invade quando sabemos que esse nosso “melhor” foi negligenciado. É quando sabemos, bem no fundo, que poderíamos ter feito diferente. Entre todas, esta é uma das dores que mais machucam.

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