de Invenção de Orfeu - Jorge de Lima (1893-1953)


O céu jamais me dê a tentação funesta

de adormecer ao léu, na lomba da floresta,

onde há visgo, onde certa erva sucosa e fria,

carnívora decerto o sono nos espia.

Que culpa temos nós dessa planta da infância,

de sua sedução, de seu viço e constância?

Minha cabeça estava em pedra, adormecida,

quando me sobreveio a cena pressentida.

Em sonâmbulo arriei as mãos e os pés culpados

dos passos e do gesto em vão desperdiçados.

Despi-me de outros bens, de glória mais modesta:

reserva-me por fim a minha pobre testa

confundida com a pedra em meio da floresta.

Que doces olhos têm as coisas simples e unas

onde a loucura dorme inteira e sem lacunas!

Agora posso ver as mãos entrecruzadas

e as plantas de meus pés nas entranhas amadas,

nesse início que é a clara insônia verdadeira.

Ó seres primordiais que sois testa e viseira,

restituo-me em vós, sangue e máscara vividos,

desejo de esquecer tempo e espaço existidos;

e em vós e em vossa paz meus solilóquios paro-os

penetro-me do Verbo em seus silêncios claros,

invisto-me de vós, vossa fronte me espia

através dessa pedra em que nasce o meu dia.


(de Invenção de Orfeu) Jorge de Lima (1893-1953)

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